3 de março de 2009

Um bicho do fado


O Camané é um daqueles tiranos com a capacidade inerente de nos conseguir dar tudo o que precisamos, num pequeno momento de entrega.
Se tivesse nascido em New Orleans seria provavelmente um génio na interpretação do jazz. O fado é uma questão de geografia, o que o Camané nos provoca apenas nos pode ser explicado pela biologia.
De voz arreigada às ruas de Lisboa e à rudeza da noite, Camané canta-nos sempre as suas cicatrizes. A sua canção não nasceu de bandas pop-rock de garagem e ele não descobriu o fado com a maturidade dos 20 anos; o fado nasceu com ele, com todo o peso que traz.



Há poucos encantos maiores do que a entrega total de um Homem, que chora as suas dores a cantar para nós, estremecendo. Camané é, neste sentido, o mais romântico nas canções. Silencia a alma com gritos de fado e sonha-o de forma a alimentar cada dia que passa. Vemos contadas nas suas notas, e nas profundezas a que chega com a sua voz e palavras, as tempestades porque passou e as que prevê vir a passar.Porque se consegue ver por dentro, a cada milímetro de dor e felicidade. É esse o seu fado, docemente amargo. Camané brinda-o, e enfrenta a vida, cortês: não se revoltaria perante os outros, mas sim perante ele próprio. Aos outros dá tudo o que a sua alma tem para dar, com aquela voz que tudo sobressalta, e que só não comove o maior dos cínicos. Camané é uma oferenda dos deuses, talvez mais poderosa para os outros do que para ele próprio, pois terão que ser grandes os fantasmas que dele se esvaem a cada vez que canta para nosso deleite. Nós sim, somos os privilegiados de viver para também poder apreciar tal beleza na arte.
O título do seu último álbum “Sempre de mim”, com arranjos e produção do seu padrinho musical José Mário Branco, diz quase por si só o que vemos imortalizado no seu trabalho: cantar o fado é-lhe absolutamente necessário. É um bicho do fado e para não desesperar brinda-nos com todo o seu talento.

Texto editado na revista online atol - www.atolmag.com


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